ENTREVISTA COM GASTÃO CRUZ

Luís Maffei


Introdução

       Gastão Cruz é um dos nomes mais importantes não só da poesia, mas também da crítica literária portuguesa. Tudo começa na Poesia 61, não um movimento, mas uma coincidência que uniu cinco nomes: além de Gastão, Casimiro de Brito, Maria Teresa Horta, Fiama Hasse Pais Brandão e Luiza Neto Jorge. Seguiram-se vários volumes de poemas, entre eles, e só para citar alguns poucos, Outro nome (1965), Campânula (1974), O Pianista (1984) e Crateras (2000), além de duas edições da poesia reunida (Órgão de luzes, de 1990, e Poemas reunidos, de 1999) Nesta entrevista, cujo tema central é poesia, Gastão fala a Luís Maffei também da existência e da formação do leitor, da relação Brasil/Portugal e de seu último livro, Rua de Portugal, de 2002, no qual constam os poemas que aqui comparecem.
       Nascido em Brasília em 1974, Luís Maffei é graduado em Letras pela UFRJ, instituição onde cursou o Mestrado em Literatura Portuguesa. Sua dissertação versa sobre Herberto Helder sob orientação do Prof. Dr. Jorge Fernandes da Silveira. É também músico e compositor.

MAFFEI: Você é um autor que teorizou a fala no título de um de seus livros, Teoria da fala. Sendo a poesia um tipo muito peculiar de fala, qual é, em linhas gerais, a peculiaridade da poesia?

GASTÃO CRUZ: A poesia é, necessariamente, criação de uma linguagem. Isso se tornou cada vez mais claro, sobretudo na poesia portuguesa, talvez, a partir dos finais do século XIX, com um conjunto de poetas a quem poderíamos chamar de Os fundadores da modernidade poética portuguesa. Mesmo quando há, em alguns deles, particularmente em Cesário Verde, uma espécie de causalidade realista, esse realismo funciona, sobretudo, pelo trabalho que o poeta, no caso Cesário, exerce sobre a linguagem poética. Por isso encontramos, por vezes, versos absolutamente espantosos para nós ainda hoje, como sucede, por exemplo, em “O Sentimento dum ocidental”, que começa com a descrição de um anoitecer em Lisboa (“Nas nossas ruas, ao anoitecer, / Há tal soturnidade, há tal melancolia,” etc.) e, a certa altura, à medida que a noite avança, a transfiguração do real acentua-se, e nós encontramos alguns versos que apresentam até um trabalho fônico e metafórico, digamos assim; por exemplo, “Tinham lívidas luzes as fachadas”: a aliteração, a própria adjetivação que é surpreendente. Mais à frente, em “Horas mortas”, a parte final, quando a cidade está deserta e em que há uma transfiguração ainda maior no cenário em que o poema se desenvolve, encontramos, por exemplo, o verso “Amareladamente, os cães parecem lobos”. Enfim, penso que o que caracteriza de fato a poesia, e isso é uma idéia que tenho defendido muitas vezes, é essa capacidade de criar, através das palavras, uma realidade autônoma que parte do próprio real. Penso que o ponto de partida, de algum modo, é sempre o real, mesmo quando a poesia é mais transfiguradora; pode-se até pensar no caso de um Herberto Helder, mas julgo que o ponto de partida para toda aquela transfiguração da realidade é um acontecimento real. Mas, voltando a Cesário Verde, sendo o ponto de partida o real (“Quisera que o real e a análise mo dessem o livro”), essa análise acaba por ser altamente transfiguradora, e isso está intimamente ligado à criação de uma linguagem e ao poder da palavra. Essa é uma visão da poesia muito cara à minha geração, por um lado, mas também a poetas de outras gerações que estavam a escrever no começo da década de 60. O tema das palavras atravessa, digamos, transversalmente toda a poesia que se fazia no final dos anos 50, início dos anos 60: em António Ramos Rosa, onde isso é muito evidente, (“As palavras mais nuas, as mais tristes”, etc.), um poema logo do primeiro livro, O Grito claro, também em Mário Cesariny, “entre nós e as palavras há metal fundente”, por exemplo, ou em Eugénio de Andrade, toda a teorização em torno das palavras e com as artes poéticas várias que existem na poesia dele. Depois, de alguma forma, todos os poetas da minha geração e até alguns um pouco mais velhos, como o Herberto, o Ruy Belo, todos eles realmente teorizam muito em torno da palavra, em torno da linguagem. Naturalmente que Fernando Pessoa também contribuiu muito para este novo entendimento da poesia como alguma coisa que, ligada a um ponto de partida real, altera essa situação e lhe dá uma aparência de irrealidade mesmo quando a linguagem está muito cingida a essa realidade; no fundo é isso que diz o famoso poema “O poeta é um fingidor”: a dor vai parecer fingida não no sentido comum da palavra, mas no sentido de que ela é transfigurada, ele diz que é a dor que “deveras sente”. Isso se prende com o que ele escreve numa carta, não a carta mais famosa ao Adolfo Casais Monteiro sobre a gênese dos heterônimos, mas uma carta de 1915, dirigida ao Armando Cortes Rodrigues, companheiro dele no Orfeu, em que ele já explica o que são os heterônimos e diz que considera aquela literatura uma literatura sincera, tal como são sinceras as falas do Rei Lear do Shakespeare, por exemplo. Enfim, penso que o sentido da linguagem poética é realmente o de conseguir transpor o real para a poesia, criando uma linguagem que é diferente e autônoma em cada poeta.

MAFFEI: Sua obra, que começa na Poesia 61, um dos movimentos decisivos da poesia portuguesa do século XX, encontra hoje, mais de 40 anos depois, um Portugal depois: depois de 74, depois da Europa. Isso de algum modo define o caráter desse poeta, ou desses poetas, que começam a escrever ainda sob o fascismo e que, hoje, são poetas europeus? Penso, claro, no que disse o António Franco Alexandre, de que hoje um europeu tem mais condição de ler a poesia portuguesa que um brasileiro.

GASTÃO CRUZ: Essa questão, para mim, não se põe de forma muito nítida porque, antes e depois dessa integração política na Europa, sempre houve uma ligação cultural nossa muito forte não só com a poesia européia, mas com a poesia de todo o mundo. Qualquer poeta tende a alargar o seu conhecimento de poesia a tudo aquilo que consegue ler, mesmo para além das próprias barreiras lingüísticas. Naturalmente, conhecíamos melhor os poetas que tradicionalmente estavam mais ligados à poesia portuguesa como, particularmente, os poetas franceses, ou os ingleses. Mas, apesar das barreiras lingüísticas, sempre tentamos ler poesia alemã, italiana, russa, inclusivamente, apesar de só conseguirmos lê-la em tradução.

MAFFEI: A japonesa também, como apontam os Haikais do Casimiro de Brito.

GASTÃO CRUZ: Sim, exato. E, dentro da língua portuguesa, a poesia brasileira teve uma presença fortíssima junto aos poetas portugueses durante toda a primeira metade do século XX, particularmente. Todos os poetas portugueses com alguma cultura poética, entre os quais, naturalmente, os melhores, eram grandes leitores de Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto, enfim, toda aquela grande constelação da poesia brasileira; toda a gente, de alguma forma, sempre admirou esses poetas que não eram europeus, mas que eram de língua portuguesa. Talvez em relação à poesia espanhola não houvesse um conhecimento tão próximo, mas, apesar de tudo, Lorca, por exemplo, teve grande popularidade em Portugal, do mesmo modo que Vicente Aleixandre e toda a geração de 27, sobretudo, que foi bastante conhecida. Mas em relação à Espanha nós tínhamos um pouco a idéia de que era um país que também estava sob uma ditadura, então talvez isso nos distanciasse mais do que da França, principalmente, que para nós era a imagem da liberdade, a pátria da liberdade. Portanto, para mim não há uma separação entre antes e depois do 25 de abril em relação a esse contato com a Europa, sempre tentei ler tudo o que podia e não faz sentido para mim chamar-me poeta europeu ou poeta outra coisa qualquer: preferia chamar-me poeta do mundo.

MAFFEI: Portugal é considerado um país lírico, uma pátria de poetas. Numa comparação muito rápida com o Brasil, na mais absoluta contemporaneidade, há diversos poetas em Portugal que podem ser chamados, com o perdão da palavra, grandes poetas, enquanto o Brasil perdeu um pouco essa idéia. Por outro lado, não exatamente por essa razão, o Brasil é um país que não lê poesia fora dos círculos acadêmicos de letras, e eu não sei se o mundo lê poesia. Portugal, em termos de pessoas que não pertencem a círculos acadêmicos, lê poesia?

GASTÃO CRUZ: Há talvez, em Portugal, um público relativamente maior para a poesia, proporcionalmente, do que em países como a França ou como a Inglaterra hoje em dia. A percentagem de leitores e de venda dos livros de poesia é realmente maior. Mas é preciso fazer uma distinção: quando alguém me diz “eu gosto muito de poesia” ou “eu leio muito poesia”, é preciso ver que poesia essa pessoa lê. Em muitos desses casos isso significa que lê Florbela Espanca, o que não quer dizer que Florbela Espanca não tenha o seu lugar na literatura portuguesa, mas acaba por ser uma coisa muito limitada. Ou então as pessoas conhecem melhor poetas que, por razões extrapoéticas, nomeadamente políticas, aparecem muito na televisão, ou têm uma vida pública mais conhecida independentemente do valor deles, não estou a pôr isso em causa. Hoje, na verdade desde há bastantes anos, não é tão fácil um poeta ser conhecido por um público relativamente mais vasto como era na geração, digamos, de Sophia de Mello Breyner, de Eugénio de Andrade, de Jorge de Sena, poetas que criaram um nome, tornaram-se muito conhecidos quando ainda tinham 30, 30 e poucos anos, coisa que, nas gerações seguintes, sobretudo a partir dos anos 60, já não aconteceu tanto. Mesmo poetas que são considerados grandes poetas hoje (Ruy Belo, Luiza Neto Jorge, etc.), se fores perguntar a um público mais amplo se conhecem o nome, provavelmente ninguém vai saber quem são. Mas haverá quem conheça a Sophia de Melo Breyner ou o Eugénio de Andrade ainda. Muito provavelmente isso se relaciona com a linguagem poética de cada um deles: a Sophia e o Eugénio, embora sendo grandes poetas, são de uma leitura mais acessível do que uma poesia já, digamos, influenciada pelo surrealismo, ou que apresenta um choque entre as palavras mais violento, que cria sentidos menos transparentes. Ainda quanto à popularidade, diz-se, muitas vezes, que Portugal é um país de poetas. Essa é uma expressão que eu temo imenso porque, sendo um país de poetas, há muita gente que pensa que escreve o seu poema, todo adolescente pensa que escreve a sua poesia, mas são meros desabafos líricos que não têm nada a ver com a poesia. Eu vou muito a escolas e temo quando me querem mostrar uns poemas porque eu já sei que vou ter de dizer que não é poesia, e eles ficam decepcionados porque nem sequer conseguem entender por que lhes digo que aquilo não é poesia, já que para eles é. Lembro-me agora, por exemplo, de ter estado na Universidade de Lyon, há uns anos atrás, com o Pedro Tamen; havia pouca gente na nossa sessão e umas pessoas invejavam a maneira como se vê a poesia em Portugal dizendo “aqui ninguém quer saber da poesia, ninguém lê poesia”. Em Portugal a situação não é má, apesar de tudo há umas boas centenas de leitores que asseguram a publicação dos nomes que poderíamos considerar, entre aspas, relativamente consagrados, aqueles que atingiram algum reconhecimento, não junto a um público muito vasto, mas entre aquelas pessoas que minimamente se interessam por literatura. É, decerto, uma situação mais confortável do que...

MAFFEI:... a nossa.

GASTÃO CRUZ: Não sei se a vossa, mas, pelo menos, do que a dos países da Europa Central, digamos assim.

MAFFEI: Eu me lembro do encerramento do Vulcão do Luís Miguel Nava, onde se lê, num texto tão poético quanto os outros que lá estão, dos desertos por que passou o livro até chegar ao leitor, e vejo que uma das acepções de deserto, neste caso, é a editorial: há um tipo de deserto editorial. Você acaba de dizer que os nomes que têm NOME editam em Portugal. E os nomes que ainda não são NOMES, editam?

GASTÃO CRUZ: Editam, não há muita dificuldade nesse aspecto. Há muitos poetas relativamente jovens ainda. Aliás, a Relâmpago vai publicar um conjunto considerável de poetas que têm menos de 40 anos. Devo confessar que não sou um grande entusiasta dessa poesia, não vejo ainda ali perfilar-se uma grande figura da poesia portuguesa. Há poetas de que gosto bastante, poetas que têm crescido, o Luís Quintais, por exemplo, ou o Tolentino Mendonça, que têm uma poesia bastante interessante. Mas acho que um grande setor dessa poesia mais jovem está um bocado ligado a uma coisa que considero um equívoco: aquilo que em Espanha se chamou poesia de la experiência, que é uma poesia que procura uma relação com o real muito direta e sem a transfiguração de que eu falei antes. Há muito aquele poema que parece um apontamento, muita coisa sobre os bares, sobre o poeta que está no bar e que pretende criar uma encenação de poeta marginal, ou de poeta maldito, mas que nós sentimos que soa um pouco a falso. Ir a um bar não dá maldição nenhuma a ninguém, a pessoa pode estar em casa e ser um poeta muito mais maldito ou muito mais marginal do que o poeta que freqüenta os bares, que bebe e fala do álcool e dessas coisas assim.

MAFFEI: Talvez por razões semelhantes não goste tanto da Adília Lopes, por exemplo.

GASTÃO CRUZ: Ela é um caso um pouco especial no panorama da poesia portuguesa. Eu percebo que aqui no Brasil ela tem bastante sucesso porque há um setor da poesia brasileira que tem traços em comum com ela. Confesso que de início tive alguma dificuldade em aceitar a poesia dela. No entanto, hoje reconheço que é uma coisa muito genuína, é uma poesia que se impôs e que tem um lugar no panorama da poesia portuguesa. Mas voltando à questão dos poetas que editam, há uma editora, a que publicou o livro do Eucanaã Ferraz, a Quasi, que tem publicado muita poesia jovem. Nem toda ela é boa, mas a Quasi tem sido uma porta aberta para muitos poetas que começam, que editam o primeiro livro.

MAFFEI: E essa poesia jovem que se edita chega às livrarias?

GASTÃO CRUZ: Chega, eles distribuem bastante bem. Publicam muita coisa, talvez demais, mas no meio disso há oportunidade para muita gente publicar. Mas há poetas relativamente jovens na própria Assírio & Alvim, que acaba de publicar o Manuel de Freitas, um poeta recente, crítico também, desses tais ligados à “poesia da experiência”, dos bares: é uma poesia a que não adiro muito. Ele organizou também uma pequena antologia de um grupo de poetas dessa geração que se chama, significativamente, Poetas sem qualidades. No prefácio, ele diz que “estamos fartos de poetas com muitas qualidades”, etc. “e agora queremos a poesia sem qualidades”. Eu acho que a atitude em si pode ter graça, mas na prática, em muitos casos, significa que a poesia não vai muito acima do tal simples apontamento de circunstância...

MAFFEI: Uma construção poética não tão transfiguradora como a, por exemplo, do Cesário Verde, que você citou há pouco...

GASTÃO CRUZ: Sim. Há uma coisa que o Fernando Pessoa diz ao Armando Cortes Rodrigues na carta que eu citei atrás, de 1915, não sei citar agora textualmente, mas quando ele fala dos heterônimos ele diz que “a literatura deles é sincera, em todos eles eu pus uma alta idéia metafísica”, algo assim, “em todos há uma atenção ao mistério de existir”. Penso que o que marca a grande poesia do real, se assim se pode dizer, como a poesia do Carlos Drummond de Andrade ou como a poesia do Ruy Belo, que são poetas que escrevem por vezes sobre o fait-divers, é dar alguma volta à circunstância de que partem, e isso acontece nos grandes poetas: eles não se limitam a reproduzir fotograficamente o real, e a própria fotografia também cria, não é uma imagem fixa e tão direta assim, o fotógrafo escolhe o ângulo...
        O que eu sinto por vezes é que isso não se dá nessa poesia jovem, ela causa-me uma sensação de déjà-vu: como eu já fui testemunha de uma série de décadas de poesia, já assisti a essa atitude umas décadas atrás. A poesia meio marginal, meio direta, despretensiosa, raras vezes deu um resultado duradouro, embora até tenha havido na literatura portuguesa um caso único que é o da Irene Lisboa, que tem uma obra importantíssima embora não muito popular, talvez porque acaba por ser uma obra que exige, da parte do leitor, uma entrega um pouco diferente. Ela, num dos seus livros de poema, tem uma nota que diz “Ao que vos parecer verso chamai verso e ao resto chamai prosa”. Mas aquele prosaísmo da literatura dela, aquela captação do cotidiano e das coisas simples acaba por criar uma linguagem com uma força extraordinária, sobretudo quando lemos o conjunto da obra, tanto a poesia como a prosa, e realmente não há compartimentos muito estanques entre ambas.

MAFFEI: Enfim, você costuma ir a escolas, o que é interessante porque, em tese, lá não estão leitores nem da sua poesia nem de poesia em geral.

GASTÃO CRUZ: A idéia surgiu há uns cinco ou seis anos atrás. As turmas são geralmente dos anos finais das escolas secundárias, mas também fui a algumas escolas de crianças, menos vezes, mas também fui. A idéia surgiu quando era Ministro da Educação o Guilherme de Oliveira Martins – que é descendente, não sei se neto ou bisneto, do Oliveira Martins, o escritor –, um homem culto, inclusivamente ele tem uma coluna no Jornal de Letras, em que escreve sobre temas de cultura. Ele achou interessante que alguns escritores bastante solicitados para participar em encontros no estrangeiro e outras coisas, ou que mesmo em Portugal também mantinham uma atividade de divulgação cultural, substituíssem a sua atividade docente normal, que é algo que muitos poderão fazer de uma forma equivalente, e entrassem em contato com a escola e com os estudantes.
        A Lídia Jorge, por exemplo, esteve – e penso que ainda está – nessa atividade. Eu estou desde este ano aposentado, mas nos últimos cinco anos fui, com alguma regularidade, a muitas escolas. A idéia era sobretudo dar aos estudantes a noção de que o escritor não era aquele ser distante, abstrato, que está na página da seleta, do compêndio, mas alguém que é igual a eles e fala com eles, é um ser com quem é possível dialogar, levantar questões, etc. De início, por vezes, era preciso quebrar um certo gelo, uma certa desconfiança, naturalmente porque eles, hoje em dia, estão motivados para outras coisas: chegar a uma escola para falar de poesia é algo que pode assustar alguns. Por outro lado, há sempre um setor que tem interesse, quase sempre conseguia, ao fim de falar com eles durante um bocado, captar a atenção e o interesse. Normalmente mandava antecipadamente uma seleção de vários poemas contemporâneos, não uma coisa exaustiva mas uns dez ou doze poemas que me parecia que podiam funcionar bem e chamar o interesse deles, depois normalmente lia os poemas, conversava com eles sobre os poemas. Também tinha que pôr um ou dois meus porque há sempre a expectativa de conhecer alguma coisa escrita pela pessoa que ali está.

MAFFEI: Isto efetivamente forja leitores?

GASTÃO CRUZ: Eu penso que sim. A minha idéia era sempre que, se no meio daquelas centenas ou mesmo milhares de pessoas com que eu contatei ao longo dos anos, se tivesse criado vinte ou trinta ou quarenta verdadeiramente interessados, o trabalho já teria sido muito positivo. Porque lhes era levado um tipo de coisa a que eles tinham pouco acesso, é claro que as pessoas quando não têm acesso às coisas não podem gostar delas. Infelizmente os professores de português têm quase que medo da poesia contemporânea, de não saber interpretar, de não saber entender. Os programas também não têm grande número de poetas, sobretudo.

MAFFEI: Nem aqui.

GASTÃO CRUZ: Está a desaparecer, não é?

MAFFEI: E isso chega, de modo um tanto assustador, à universidade: nos cursos de graduação pouco se passa, e quando se passa, dos modernos.

GASTÃO CRUZ: Mas nas universidades portuguesas também se lê muito pouco. No ensino secundário há pouco além do Fernando Pessoa, e quando eu estava no Liceu nem Fernando Pessoa havia.

MAFFEI: Você, na UFF, já que seu curso foi para o Mestrado, pôde reparar que é nesse ponto de suas vidas acadêmicas que as pessoas são apresentadas à poesia contemporânea.

GASTÃO CRUZ: É isso, exatamente. Antes de começar a falar, para perceber um pouco como havia de fazer as coisas, tentei saber o que conheciam, e percebi que conheciam o Pessoa e pouco mais. Há alguém que está a trabalhar no Ruy Belo, alguém no Eugénio de Andrade, então conheciam um pouco o poeta com quem vão trabalhar. Tudo o que eu possa dizer sobre o Herberto Helder, ou sobre a Fiama ou sobre a Luiza Neto Jorge, praticamente é uma novidade.

MAFFEI: Não há como não abordar a questão Brasil/ Portugal. No caso brasileiro, a última informação que nos chegou foi a de dois atores portugueses em novelas...

GASTÃO CRUZ: Um era o Nuno Lopes, e ele, além de bonito, não é mau ator. Esteve na companhia do Luís Miguel Cintra, um grande ator e encenador que inclusive tem diversas gravações de poemas em disco. Essa companhia, o Teatro da Cornucópia, é um teatro coerente, tem feito os melhores espetáculos nos últimos trinta anos em Portugal. O Nuno Lopes começou lá, mas nunca fez grandes papéis. Ganhou maior popularidade quando começou a fazer algumas coisas cômicas no programa do Herman José.

MAFFEI: Mas o fato é que esse rapaz e essa moça são as notícias portuguesas que chegam por cá. Na música não chega quase nada. Em termos de literatura, Saramago se lê aqui, e alguns outros portugueses têm editoras brasileiras, mas não obtêm êxito. Se o Portugal que nos chega, enfim, é só esse, que Brasil vos chega?

GASTÃO CRUZ: Lá chega muita coisa, sempre se ouviu muita música brasileira em Portugal. Quanto à literatura, a grande poesia brasileira foi muito conhecida. João Cabral de Melo Neto, talvez agora nem tanto, mas, numa certa altura, foi tão conhecido quanto os grandes poetas portugueses.

MAFFEI: E a narrativa brasileira de agora? O Rubem Fonseca acaba de receber o Prêmio Camões.

GASTÃO CRUZ: Eu devo dizer que não sou um grande leitor de narrativa, nem a portuguesa nem a brasileira. Mas há alguns brasileiros publicados lá, além do Chico Buarque, que chega mais pelo fato de ser um cantor conhecido.

MAFFEI: O Bernardo Carvalho...

GASTÃO CRUZ: Sim, também esse. Na poesia, a Quasi, que publicou o livro do Eucanaã, publicou também o livro do Antônio Cícero, Guardar, que é um livro de que eu gosto muito. Mas não há grande conhecimento acerca da poesia brasileira contemporânea, há uma certa confusão acerca de quem é quem. O Osvaldo Silvestre com a Inimigo rumor, a Ângelus Novus, esses tem feito alguma coisa com poetas brasileiros. Também saíram poemas brasileiros no número da Colóquio Letras sobre o João Cabral, saiu a poesia do Duda Machado, do Sebastião Uchoa Leite. Eu só li aqueles poucos poemas que lá estavam e, portanto, não posso pronunciar-me sobre esses poetas.

MAFFEI: Mas que Brasil se vê em Portugal, além da música que se ouve e do futebol que se vê?

GASTÃO CRUZ: Há muitos brasileiros em Portugal, aquela imigração que houve de Portugal para o Brasil agora é um pouco ao contrário. Eu acho que o Brasil é muito bem aceito em Portugal, em geral as pessoas têm simpatia pelo Brasil e pelos brasileiros. No plano cultural, por exemplo, a obra da Clarice Lispector está agora a ser editada pela Relógio d’água, e tem uma certa projeção, não direi que seja uma autora popular, não sei se aqui no Brasil ela é...

MAFFEI: Sim, bastante, e claro que eu digo bastante porque é um nome que pode ser reconhecido por uma pessoa não leitora.

GASTÃO CRUZ: Sim, e isso é um pouco como em Portugal, caso se pergunte a alguém minimamente interessado em literatura se já ouviu falar de Sophia de Melo Breyner ou de Eugénio de Andrade talvez já tenha ouvido. O Brasil culturalmente penetrou em Portugal sobretudo no plano musical, alguns cantores brasileiro preenchem o Coliseu duas noites ou três, e o Coliseu é um lugar onde cabem três ou quatro mil pessoas.

MAFFEI: Depois de Rua de Portugal, que há?

GASTÃO CRUZ: Por enquanto ainda não sei, tenho um grupo de poemas que ainda não formam um livro. Eu gostaria de voltar a uma coisa que eu fiz, por exemplo, em Outro nome, que era um conjunto de dez canções camonianas. Não digo que seja necessariamente isso, mas gostaria de fazer um livro que não fosse só um livro de poemas, mas um conjunto mais articulado, um poema vasto de conjunto. No entanto, isso não se tem compadecido muito com a minha vida, para fazer isso eu teria de me isolar um pouco, fugir um pouco àquelas solicitações constantes do dia-a-dia, não só literárias mas as coisas mais absurdas que temos que fazer. Agora deixei de dar aulas mas todos os dia, não sei como, aparecem não sei quantas pequenas coisas para resolver.

MAFFEI: Quando você diz desse isolamento, ele pode ocorrer mesmo em Lisboa ou você teria que sair de lá por uns tempos?

GASTÃO CRUZ: Teria talvez que sair de Lisboa, sim. Posso sempre ir ao Algarve, tenho uma casa, que era a casa da minha mãe, mas é minha neste momento, em Faro. Mas também isso tem um preço, pois não gostaria de viver lá novamente, há fantasmas da infância, da adolescência, uns resquícios de melancolia. Gosto de ir lá, no verão há a praia, mas não gostaria de lá viver. Mas penso que poderia encarar a hipótese de passar lá alguns períodos para eventualmente escrever mais. A oferta cultural é muito menor em termos de música, de teatro, mas também é verdade que posso passar muito tempo em Lisboa sem ter muita oportunidade de fazer tudo isso, mas faço o possível. A Gulbenkian, por exemplo, tem uma temporada de concertos muito boa, vou acompanhando o cinema que vai surgindo, no teatro há muita coisa que não me interessa nada, mas outras valem a pena. Claro que em Faro, exceto, talvez, o cinema, já que hoje há mais cinemas em Faro, não existe grande oferta cultural.

MAFFEI: Já há poemas inéditos?

GASTÃO CRUZ: Há inéditos, aliás saiu um numa revista virtual chamada Aerograma, que é, pelo que vi, coordenada por um filho do Wally Salomão. Quem pôs lá o poema foi o Eucanaã. Mas há pouca coisa.

MAFFEI: Também não há urgência, há?

GASTÃO CRUZ: Urgência há alguma, há vontade, sobretudo há o desejo de encontrar a disponibilidade, o momento para entregar-me a uma coisa um pouco mais sistemática, sem ser o poema curto que surge aqui ou ali, como o que fiz no recente vôo para Tóquio. Em Rua de Portugal há também um poema feito num avião, entre Rio e Lisboa.

MAFFEI: Então diga alguma coisa de Rua de Portugal.

GASTÃO CRUZ: Eu tentei na segunda parte do livro, que se chama “Rua de Portugal e outros lugares”, encontrar uma espécie de disciplina realista, tentar fazer poemas sobre coisas, sobre lugares, coisas mais concretas, menos abstratas. Mas é uma fase, não quer dizer que a seguir eu não tenha um rumo diferente. Salvo as devidas distâncias, isso tem a ver com aquela preocupação do Rilke de fazer poemas sobre coisas, nos Novos poemas. A primeira parte de Rua de Portugal tem alguns poemas em que surge a personagem do computador, que é um tipo de experiência um pouco nova. Há alguns na segunda parte que estão entre os que prefiro. Depois há “O Vocábulo tempo”, que é mais a minha temática, ligada à passagem do tempo, um tema recorrente, e a parte final tem muito que ver com a doença da Fiama, em que me parecem estar algumas das coisas mais bem-sucedidas do livro.

ALGUNS POEMAS DE RUA DE PORTUGAL

NA POESIA

Na poesia procuro uma casa onde o eco
existe sem o grito que todavia o gera

SOLUÇO

Não poderei
tirar-te desse abismo
sentar-te à mesa
já estou
também, sei bem, um pouco morto,
por ti por esse
dia
que ao formar-se deixou
o soluço do tempo
audível no algodão com que taparam
a tua boca

EM TEMPO ALHEIO

Peço desculpa de ser
o sobrevivente.

Drummond, As Impurezas do branco

Demasiados mortos para a
minha memória
O dia está aí um projetor nos rostos
que repetem
cenas, deslocando-se entre os móveis
polidos pelos anos e as árvores, com falas retardadas
Não há quem sobreviva a ninguém no cenário
são somente aparências o que está
e o que falta,
todos em cada um,
enquanto ausentes o habitam como casa
em tempo alheio
Deixastes toda a esperança vós que entrastes
na memória

A MANHÃ

Esta manhã
hoje
é um nome

Fiama, Barcas novas

É assim a manhã, um nome
para o mundo, abrir os olhos como
alguém que fala
Podem o tempo ou a
morte diurna
dar aos olhos abertos o nada das palavras

O sol será então
o silêncio no olhar ou a mão
sobre a testa
que faz descer as pálpebras
como se os dedos dessem à cabeça a verdade
submersa nesse nada

e a manhã viesse
não como sombra vasta vestir a voz
do corpo
mas cobri-la da
luz
das palavras que faltam

DEPOIS DUM SONHO

Não deixaste o deserto mas
árvores na casa Em sonho és
o sedutor arbusto reflectindo
para sempre o meio-dia O sol
porém desfaz-se quando as pálpebras
num ardor se entreabrem e te ocultas
nos ângulos do quarto Ausente
és pois o centro
feroz da minha vida transitas
como serpente fria no ventre
contraído escondes-te na
floresta que sem cessar se expande
onde dormíamos E erras
nos limites duma casa
destruída por raízes